A esporotricose é micose subcutânea subaguda ou crônica, causada por fungos termodimórficos do gênero Sporothrix.1 Embora o diagnóstico da forma clássica seja relativamente fácil, outras variantes representam desafio diagnóstico. Morfologicamente, pode simular ceratoacantoma, erisipela, sarcoidose e pioderma gangrenoso (PG). O termo esporotricose pioderma gangrenoso‐símile (EPGS) é utilizado para descrever formas ulcerativas extensas.2–11 São relatados três casos novos e faz‐se a revisão dos já publicados.
Paciente do sexo feminino, de 48 anos, com úlcera dolorosa na coxa direita havia três meses, com aumento progressivo e lesões satélites (fig. 1). A paciente era portadora de hepatite autoimune, em tratamento com prednisona 1mg/kg/dia e azatioprina 3mg/kg/dia havia cinco anos. As culturas teciduais foram negativas e o exame anatomopatológico demonstrou paniculite granulomatosa, supurativa e agressão vascular. Diante da hipótese de PG, a paciente recebeu pulsoterapia intravenosa com metilprednisolona, 1g/dia por três dias, sem melhora. Como não houve resposta, nova biopsia foi realizada na borda da mesma lesão, uma semana após a pulsoterapia. Estruturas leveduriformes coradas por PAS (Peridodic Acid Schiff) foram encontradas no tecido subcutâneo (fig. 2A). Simultaneamente, o gato de estimação foi diagnosticado com esporotricose por cultura de secreção (fig. 2B). Como a paciente apresentava síndrome hepatorrenal, mesmo sendo imunossuprimida, optou‐se pelo tratamento com iodeto de potássio (2g/dia). A paciente evoluiu com cicatrização quase completa em três meses de tratamento (fig. 1), quando apresentou descompensação do quadro hepático e óbito. Embora a hepatotoxicidade associada ao iodeto de potássio seja rara, ela pode ocorrer em pacientes com hepatopatias prévias. Entretanto, a equipe de Gastroenterologia relacionou o desfecho à piora da doença de base.
O segundo paciente, sexo masculino, 49 anos, apresentava úlcera dolorosa na fossa antecubital direita com lesões satélites e linfonodomegalia perilesional de um mês de evolução (fig. 3A). O paciente era portador de artrite psoriásica e diabetes mellitus. Estava em tratamento com infliximabe 3mg/kg havia quatro anos, sulfassalazina 2g/dia havia três anos, prednisona 20mg/dia havia seis meses. Diante da suspeita inicial de ectima gangrenoso, iniciou‐se clindamicina e ciprofloxacino por um mês, sem melhora. Posteriormente, Sporothrix sp. foi isolado no fragmento da úlcera enviado para cultura. No exame anatomopatológico, verificou‐se granulomas abscedidos, com pesquisa de fungos negativa. Itraconazol foi iniciado, porém o paciente evoluiu com síndrome hepatorrenal, o que levou à suspensão do medicamento. Em substituição, iodeto de potássio (3g/dia) foi administrado por dois meses, com cicatrização da úlcera (fig. 3B).
O terceiro paciente, sexo masculino, 39 anos, apresentava lesão dolorosa, ulcerada, de aspecto cribriforme, e pápulas e nódulos abscedidos satélites na perna esquerda, de três semanas de evolução (fig. 4A). Inicialmente, foi realizado tratamento com amoxicilina associado ao clavulanato, clindamicina, vancomicina e cefepima, sem melhora. Portador de doença de Crohn, o paciente fazia uso de metotrexato 20mg/semana havia quatro anos e infliximabe 5mg/kg havia dois anos. Diante da hipótese inicial de PG, associou‐se dapsona 100mg/dia por 30 dias. O exame histopatológico demonstrou infiltrado inflamatório neutrofílico com leucocitoclasia, granulomas abscedidos e raras estruturas leveduriformes em naveta e houve crescimento de Sporothrix sp. na cultura, confirmando o diagnóstico. Itraconazol (200mg/dia) e iodeto de potássio (2g/dia) foram iniciados concomitantemente, com cicatrização após quatro meses (fig. 4B).
Formas ulcerativas extensas de esporotricose são raramente descritas e ocorrem especialmente em pacientes com imunossupressão. O termo EPGS tem sido adotado em virtude das semelhanças clínicas e histopatológicas com o PG: úlceras fagedênicas com bordas eritematosas, superfície cribriforme e com infiltrado neutrofílico.3 A abordagem inicial de PG requer a exclusão de diferenciais por histopatologia e cultura. No entanto, a pesquisa de patógenos nem sempre resulta positiva no primeiro momento. A ausência de resposta aos imunossupressores deve motivar revisão diagnóstica do caso. Além disso, as estruturas fúngicas dificilmente são visualizadas, tornando o diagnóstico de esporotricose ainda mais difícil.3 Nesse contexto, a cultura do fragmento ou da secreção é extremamente importante,11 assim como a anamnese detalhada, especialmente quanto à presença de felinos e atividades de risco, como jardinagem.
Apenas 10 casos publicados de EPGS foram encontrados na literatura de língua inglesa no PubMed (tabela 1). Mais da metade (n=6) foi publicada nos últimos seis anos, o que pode refletir melhora da acurácia diagnóstica ou aumento da incidência, principalmente em virtude da crescente população de imunossuprimidos. Os casos aqui relatados estavam sob imunossupressão.
Casos publicados na literatura (base de dados PubMed, língua inglesa até julho de 2024) e os aqui relatados
Sexo/idade | Imunossupressão/comorbidades | Local das lesões | Tratamento inicial | Método diagnóstico | Tratamento | Desfecho clínico | |
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Stroud et al., 19681 | M/62 | Carcinoma escamoso metastático | Antebraço D | Aguardar propedêutica, apesar da suspeita clínica de PG | Cultura de tecido+ | Anfotericina B 25 mg/dia por 5 dias; adicionado iodeto de potássio por 2 dias | Óbito após 7 dias de tratamento por IRA |
Spiers et al., 19862 | M/46 | Não | Abdome | Tetraciclina, eritromicina, PDN, DDS, AZA | Cultura de tecido+ | Iodeto de potássio 3 g/dia | Cura clínica após 2 meses |
Wan‐Qing et al., 19913 | F/56 | Corticoterapia para artrite reumatoide | Nádega e coxa E | PQT para TBC; PDN; DDS | Cultura de secreção+ | Iodeto de potássio (6–8 g/dia) | Melhora clínica das lesões. Óbito após 2 semanas por pneumonia |
Byrd et al., 20014 | F/59 | Não | Perna D | ATB's sistêmicos, PDN, AZA e ciclosporina | Cultura de tecido+; PAS+no AP | Itraconazol 600 mg/dia, 18 meses | Cura clínica após 3 meses |
Lima et al., 20175 | F/39 | Não | Abdome e braço D | PDN, imunossupressores infliximabe | Cultura de tecido+; estruturas leveduriformes PAS+no AP | Anfotericina B lipossomal (400 mg/dia) 6 semanas+itraconazol 400 mg/dia por 12 meses | Cura clínica |
Charles et al., 20176 | F/57 | Obesidade e asma | Braço D | Levofloxacino, ceftriaxona, PDN, penicilina e clobetasol tópico | Cultura de tecido+; estruturas leveduriformes PAS+no AP | Itraconazol 400 mg/dia | Melhora clínica e perda de seguimento |
Takazawa et al., 20187 | M/47 | Retocolite ulcerativa em uso de mesalazina | Perna D | Corticoides tópicos | Cultura de tecido+; estruturas leveduriformes PAS+no AP | Iodeto de potássio 0,5g por 2 semanas e 1g por 3 semanas | Cura clínica em 5 semanas |
White et al., 20198 | M/62 | Coronariopata | Coxa E | Cefalexina, PDN, ciclosporina, ustequinumabe, imunoglobulina | Cultura de tecido e hemocultura+ | Anfotericina B lipossomal (5 mg/kg/dia); itraconazol 600 mg/dia; anfotericina (4 mg/kg/dia); posaconazol 300 mg/dia | Cura clínica após 6 meses |
Saeed et al., 2019 9 | F/35 | Abuso de álcool e diabetes tipo II | Pernas, braços e abdome | PDN, doxiciclina | Cultura de tecido+; estruturas leveduriformes PAS+no AP | Anfotericina B lipossomal (5 mg/kg/dia); posaconazol 300 mg/dia; itraconazol 600 mg/dia | Cura clínica após 12 meses |
Tai et al., 2020 10 | M/78 | Não relatado | Braço E | Ciclosporina, micofenolato de mofetila, PDN, ustequinumabe e imunoglobulina | Cultura de tecido+ | Itraconazol 200 mg/dia por 4 meses, evoluiu com insuficiência hepática e renal, iniciado iodeto de potássio | Cura clínica após 4 meses |
Caso 1 | F/48 | Hepatite autoimune/uso de PDN e AZA | Coxa D | Antibióticos sistêmicos e metilprednisolona | Estruturas leveduriformes PAS+no AP; epidemiologia+ | Iodeto de potássio 2 g/dia por 3 meses | Melhora clínica, óbito após 3 meses por síndrome hepatorrenal |
Caso 2 | M/49 | Artrite psoriásica, fibrilação atrial, hipertensão arterial, dislipidemia, diabetes mellitus, uso de infliximabe, sulfassalazina, prednisona, amiodarona, varfarina | Fossa antecubital D | Clindamicina e ciprofloxacino | Cultura de tecido+; pesquisa de leveduras em PAS e Grocott negativas | Itraconazol 200 mg/dia, evoluiu com síndrome hepatorrenal, iniciado iodeto de potássio 3 g/dia | Cura clínica após 2 meses |
Caso 3 | M/39 | Doença de Crohn em uso de metotrexato, infliximabe e loperamida | Perna E | Amoxicilina+clavulanato, clindamicina, vancomicina e cefepima, dapsona | Cultura do tecido+ | Itraconazol 200 mg/dia e iodeto de potássio 2 g/dia | Cura clínica após 4 meses |
PDN, prednisona; AZA, azatioprina; DDS, dapsona; ATB, antibióticos; PAS, Periodic Acid Schiff; AP, anatomopatológico; PQT, poliquimioterapia; TB, tuberculose; IRA, insuficiência renal aguda.
Curiosamente, os casos apresentavam úlceras com maior eixo no sentido da drenagem linfática, enquanto úlceras de PG têm frequentemente formato mais arredondado. A existência de lesões satélites também ocorreu nos três casos e pode auxiliar a formulação de hipótese de esporotricose.
Embora o iodeto de potássio não seja a primeira escolha terapêutica para pacientes imunossuprimidos, ele pode ser usado como monoterapia quando há contraindicações a outros tratamentos.3,4 Em face da experiência nos dois primeiros casos, pelo efeito sinérgico dos fármacos e do relato da emergência de isolados de S. brasiliensis resistentes a itraconazol,1 optou‐se pela associação no terceiro paciente.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresLucas Campos Garcia: Concepção, revisão crítica, escrita, revisão de literatura, aprovação final do manuscrito.
Marianne de Sousa Nunes Soares: Escrita, revisão de literatura.
Gustavo Gomes Resende: Escrita, revisão de literatura.
Luciana Baptista Pereira: Concepção, revisão crítica, escrita, revisão de literatura, aprovação final do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Garcia LC, Soares MSN, Resende GG, Pereira LB. Pyoderma gangrenosum‐like sporotrichosis: case series of three patients and literature review. An Bras Dermatol. 2025;100. https://doi.org/10.1016/j.abd.2024.10.005.
Trabalho realizado na Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.