As úlceras orais recorrentes constituem um grupo de doenças caracterizadas por episódios repetidos de ulcerações benignas, contagiosas ou não contagiosas, e que cicatrizam espontaneamente em indivíduos saudáveis.1 Elas podem variar desde ulceração traumática, infecciosa, aftosa, relacionada a dermatoses orais, induzida por medicamentos e como manifestação de doença sistêmica.2 É importante que um clínico experiente examine as úlceras orais e realize as investigações necessárias em indivíduos que sofram de lesões recorrentes.3
Em geral, o diagnóstico é feito com base principalmente na história clínica do paciente.4 Na maioria dos casos, as úlceras aparecem de três a seis vezes por ano e duram de sete a dez dias.3 Entretanto, a condição ulcerativa recorrente mais comum da cavidade oral é, de longe, a estomatite aftosa recorrente (EAR).5
Diversos autores estudaram a correlação entre antígenos dos tipos sanguíneos de pacientes com úlceras orais recorrentes, principalmente a EAR.1,34,6,7 No entanto, que seja de nosso conhecimento, não há estudos sobre úlceras orais recorrentes na população libanesa até o momento. Assim, este estudo tem como objetivo avaliar a possível correlação entre o tipo sanguíneo ABO e tais lesões. Além disso, relatamos a prevalência e distribuição de úlceras orais recorrentes em uma amostra da população geral libanesa.
Este foi um estudo de pesquisa transversal realizado entre dezembro de 2019 e março de 2020 no Líbano. O questionário da pesquisa foi criado por um painel de profissionais de medicina oral. O questionário era composto por questões demográficas, além de 15 questões, predominantemente do tipo fechadas, sobre o histórico de ulcerações orais do participante, frequência, período, tipo sanguíneo e outros fatores associados. Este estudo foi revisado e aprovado pelo Comitê de Ética do Baabda Governmental University Hospital.
A pesquisa foi realizada online e distribuída por link de participação que levava à pesquisa. Os participantes tinham a opção de escolher entre os idiomas inglês e árabe. A pesquisa foi totalmente voluntária e anônima. O único critério de inclusão foi idade ≥ 18 anos.
Os dados foram então transferidos e analisados utilizando o software IBM SPSS Statistics for Windows, versão 24.0 (IBM Corp., Armonk, N.Y., EUA). As estatísticas descritivas foram relatadas para todas as variáveis. Os testes de Qui‐quadrado e o teste exato de Fischer foram utilizados para avaliar as diferenças estatisticamente significantes entre as variáveis categóricas. O nível de significância foi estabelecido em p <0,05.
Um total de 249 questionários completos foi recebido. Cento e vinte e cinco (50,2%) dos entrevistados eram do sexo feminino e 113 (45,4%) do sexo masculino, com 11 (4,4%) perdas. A idade variou de 18 a 64 anos, com média de 28,5±9,8 anos. Dos 249 participantes avaliados, 72 (28,9%) responderam que sofrem de úlceras orais recorrentes. As mulheres afetadas foram em número um pouco maior do que os homens (59,7%); a faixa etária de 18 a 25 anos foi a mais afetada. Os resultados são apresentados na tabela 1.
Resumo dos resultados relatados
| Frequência | Porcentagem | p | ||
|---|---|---|---|---|
| Sexo | Feminino | 43 | 59,7 | 0,126 |
| Masculino | 29 | 40,3 | ||
| Grupo etário | 18‐24 anos | 41 | 56,9 | |
| 25‐34 anos | 21 | 29,2 | ||
| 35‐44 anos | 7 | 9,7 | ||
| 45‐54 anos | 1 | 1,4 | ||
| 55‐64 anos | 2 | 2,8 | ||
| Tipo sanguíneo ABO | A | 32 | 44,4 | |
| B | 10 | 13,9 | ||
| O | 26 | 36,1 | ||
| AB | 3 | 4,2 | ||
| Não informado | 1 | 1,4 | ||
| Tipo Rh | Rh− | 6 | 8,3 | |
| Rh+ | 65 | 90,3 | ||
| Não informado | 1 | 1,4 | ||
| Tipo ABO Rh | A− | 2 | 2,8 | |
| A+ | 30 | 41,7 | ||
| AB+ | 3 | 4,2 | ||
| B− | 1 | 1,4 | ||
| B+ | 9 | 12,5 | ||
| O− | 3 | 4,2 | ||
| O+ | 23 | 31,9 | ||
| Não informado | 1 | 1,4 | ||
| Número de episódios no ano anterior | 1 | 2 | 2,8 | |
| 2‐4 | 43 | 59,7 | ||
| 5 ou mais | 26 | 36,1 | ||
| Não informado | 1 | 1,4 | ||
| Local | Região bucinadora (mucosa bucal) | 1 | 1,4 | |
| Língua | 4 | 5,6 | ||
| Lábio – mucosa labial | 8 | 11,1 | ||
| Vermelhão labial | 4 | 5,6 | ||
| Gengiva | 1 | 1,4 | ||
| Múltiplos locais | 54 | 75,0 | ||
| Múltiplas úlceras concomitantes | Sim | 30 | 41,7 | |
| Não | 42 | 58,3 | ||
| As úlceras se correlacionam com períodos de estresse | Talvez | 23 | 31,9 | |
| Não | 14 | 19,4 | ||
| Sim | 35 | 48,6 | ||
| Relacionadas ao ciclo menstrual | Talvez | 8 | 11,1 | |
| Não | 30 | 41,7 | ||
| Sim | 5 | 6,9 | ||
| Deficiência nutricional (Vit. B12, ferro) | Talvez | 14 | 19,4 | |
| Não | 34 | 47,2 | ||
| Sim | 23 | 31,9 | ||
| Não sabe | 1 | 1,4 | ||
| História familiar de úlceras orais recorrentes? | Talvez | 11 | 15,3 | |
| Não | 26 | 36,1 | ||
| Sim | 34 | 47,2 | ||
| Total | 71 | 98,6 | ||
| Não sabe | 1 | 1,4 | ||
| Frequência diária de escovação dental | 0 | 7 | 9,7 | |
| 1 | 7 | 9,7 | ||
| 2 | 37 | 51,4 | ||
| 3 | 7 | 9,7 | ||
| Não informado | 14 | 19,4 | ||
| Total | 72 | 100,0 |
O teste de Mann‐Whitney revelou que indivíduos jovens de 18 a 24 anos sofriam significantemente mais do que outras faixas etárias (p=0,001), enquanto os participantes mais velhos tinham menor incidência de úlceras orais recorrentes.
O teste do Qui‐quadrado não revelou associação entre os tipos sanguíneos ABO/Rh e a presença de úlceras orais recorrentes (p> 0,05) (fig. 1). Os tipos sanguíneos mais prevalentes na população libanesa são A+ e O+ (tabela 2), mas os grupos mais comumente acometidos por úlceras recorrentes foram A+ (41,7%) e O− (31,9%).
Percentuais de distribuição dos tipos sanguíneos ABO e Rh em nosso estudo versus na população libanesa em geral. Observe a estreita concordância entre a distribuição geral dos tipos sanguíneos no presente estudo e na população libanesa, sugerindo que a presente amostra é relativamente representativa da distribuição dos tipos sanguíneos da população
| Tipo sanguíneo (ABO Rh) | Tipos sanguíneos na amostra total(n=249) (porcentagem) | Indivíduos com úlceras recorrentes na presente amostra(n=72) (porcentagem) | Distribuição dos tipos sanguíneos na população libanesaa (porcentagem) |
|---|---|---|---|
| A− | 3,7 | 2,8 | 4,02 |
| A+ | 40,8 | 41,7 | 33,86 |
| AB− | 0,5 | 4,2 | 0,43 |
| AB+ | 5,2 | 1,4 | 3,64 |
| B− | 1,6 | 12,5 | 1,81 |
| B+ | 13,1 | 4,2 | 17,79 |
| O− | 3,7 | 31,9 | 5,36 |
| O+ | 31,4 | 2,8 | 33,09 |
| Total | 100,0 | 98,6 | 100,0 |
Embora a etiopatogenia e os fatores predisponentes das úlceras orais recorrentes, especialmente a estomatite aftosa recorrente, permaneçam relativamente obscuros, ela é, entretanto, considerada multifatorial, com importante mediação autoinflamatória.8
O presente estudo tentou avaliar diferentes fatores de risco supostamente envolvidos em úlceras aftosas recorrentes, principalmente os tipos sanguíneos ABO/Rh, e avaliar a prevalência, a idade e a distribuição por sexo de úlceras orais recorrentes em uma amostra geral da população libanesa.
Os resultados mostram que a prevalência de úlceras orais recorrentes foi de 28,9%. Outros estudos relataram resultados de prevalência semelhantes com base na história. Em nosso estudo, a faixa etária mais acometida foi de 18 a 25 anos. Esses resultados não contradizem trabalhos anteriores, que mostraram que a EAR tem maior prevalência em adultos mais jovens, diminuindo em incidência e gravidade com a idade.9
Evidenciamos discreta predileção pelo sexo feminino (59,7%); outros trabalhos também mostraram uma prevalência mais alta de EAR em mulheres.9
O estresse parece ser um fator desencadeante para o aparecimento de EAR; nossos resultados não contradizem esse possível fator, pois 35% responderam positivamente quando perguntados se as úlceras se correlacionam com períodos de estresse (fig. 2) e 23% não tinham certeza.
Em relação aos fatores nutricionais, 31,9% dos participantes relataram uma ou mais deficiências hematínicas, enquanto 19,4% não rejeitaram nem afirmaram ter uma deficiência.
Em nosso estudo, 47,2% dos pacientes com EAR relataram história familiar positiva da doença, enquanto 15,3% não tinham certeza. Do mesmo modo, no estudo conduzido por Abdullah, 34,4% dos pacientes relataram que outro membro da família já sofreu de úlcera aftosa recorrente (UAR) anteriormente.10
Os tipos sanguíneos ABO/Rh foram estudados em poucos casos em relação a uma potencial associação com a ocorrência de úlceras aftosas recorrentes. A associação entre o tipo sanguíneo O e úlceras pépticas foi a primeira evidência dessa correlação. O presente estudo não mostrou diferença significativa entre os pacientes com EAR entre os diferentes tipos sanguíneos ABO. Resultados semelhantes foram encontrados no estudo realizado por Sagiroglu et al. em 2018; entretanto, eles descobriram que o risco de EAR era seis vezes maior em pacientes com tipo sanguíneo B Rh(+) comparados a pacientes B Rh(−) e três vezes maior em pacientes AB Rh(+) comparados a pacientes AB Rh(−). Do mesmo modo, outros estudos não encontraram nenhuma correlação estatisticamente significativa entre tipos sanguíneos ABO e EAR.1,3,6,7
Que seja de nosso conhecimento, este é o primeiro estudo a avaliar a prevalência de úlceras orais recorrentes na população libanesa; além disso, é um dos poucos trabalhos realizados para avaliar a possível associação de úlceras aftosas recorrentes e os tipos sanguíneos ABO/Rh. No entanto, nossas principais limitações incluem a natureza autorrelatada do questionário com base na história do participante e o pequeno tamanho amostral; portanto, estudos maiores, prospectivos, analíticos e clinicamente correlacionados são necessários para confirmar os resultados.
As ulcerações orais recorrentes, com as úlceras aftosas recorrentes como principal causa, continuam sendo as lesões orais mais comumente associadas a dor e desconforto significantes para os pacientes. No presente estudo, não foi possível provar uma associação entre úlceras orais recorrentes e os tipos sanguíneos ABO/Rh; além disso, foram relatados parâmetros epidemiológicos dessa entidade em uma amostra libanesa pela primeira vez, que se encaixa nos dados relatados globalmente.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresZiad Noujeim; Concepção e metodologia; planejamento do estudo; obtenção significante de dados; elaboração e redação do manuscrito; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final.
Lara Nasr: Participação efetiva na orientação da pesquisa; obtenção significante de dados; elaboração e redação do manuscrito; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final.
Racha Hajj: Concepção e planejamento do estudo; obtenção significante de dados; elaboração e redação do manuscrito; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final.
Abbass El‐Outa: Concepção e metodologia; análise estatística e interpretação dos dados; elaboração e redação do manuscrito; aprovação da versão final.
Conflito de interessesNenhum.





