Bartoneloses o termo utilizado para descrever doenças causadas por qualquer espécie de Bartonella. A infecção pode manifestar‐se como bacteremia assintomática a quadros potencialmente fatais. Muitas espécies são patogênicas ao homem, mas três são responsáveis pela maioria das manifestações clínicas em seres humanos: Bartonella bacilliformis, Bartonella quintana e Bartonella henselae. A verruga peruana, causada pela B. bacilliformis, pode ser indistinguível da angiomatose bacilar causada pelas outras duas espécies. Outras manifestações cutâneas são: exantema maculopapular na febre das trincheiras, pápulas ou nódulos na doença da arranhadura do gato, vasculites (muitas vezes associadas às endocardites). Além dessas, pode ocorrer exantema morbiliforme febril, púrpura, urticária, eritema nodoso, eritema multiforme, eritema marginado, granuloma anular, vasculites leucocitoclásticas, reações granulomatosas e reações angioproliferativas. Considerando o amplo espectro da infecção e as potenciais complicações associadas às Bartonella spp., a infecção deveria ser considerada pelos médicos com mais frequência entre diagnósticos diferenciais de condições idiopáticas. Estas doenças são frequentemente negligenciadas por profissionais da saúde e pesquisadores.
Bartoneloses é o termo utilizado para descrever doenças causadas por qualquer espécie de Bartonella.1 Elas são negligenciadas, reemergentes e mundialmente distribuídas, afetando principalmente populações em situação de pobreza, com sanitização precária e que tenham contato direto com artrópodes e animais domésticos.2,3 A maioria das espécies causa doença zoonótica.1,3
Bartonella spp. são bacilos Gram‐negativos, fastidiosos e bem adaptados a uma grande variedade de animais reservatórios, particularmente mamíferos. Essas bactérias são capazes de infectar e sobreviver dentro de eritrócitos. A fase intraeritrocítica proporciona um nicho de proteção para o agente, resultando em infecção prolongada e recorrente.4 As bactérias podem também infectar células endoteliais.5
A principal forma de transmissão das Bartonella spp. é de humanos ou animais infectados para novos hospedeiros por meio de vetores artrópodes sugadores de sangue. A transmissão por meio de arranhaduras de animais tem sido relatada, mas não é garantida, uma vez que pulgas são necessárias para que haja a transmissão entre gatos.1,6 Estudos recentes reforçam a hipótese de que essas bactérias possam ser transmitidas por transfusão sanguínea, preocupando pessoas ao redor do mundo, uma vez que atualmente nenhuma ação preventiva é feita contra essa possibilidade.3,7–9 Além disso, a infecção assintomática por Bartonella sp. já foi detectada em doadores de sangue.3,8–18
As Bartonella spp. são responsáveis por um amplo espectro clínico, desde bacteremia assintomática a quadros potencialmente fatais. Embora as manifestações associadas às bartoneloses tenham aumentado bastante nas últimas décadas, os médicos normalmente não consideram a possibilidade de infecção por essas bactérias entre os diagnósticos diferenciais, exceto nos casos de linfonodomegalia localizada ou endocardites com cultura negativa,19,20 o que sugere que as bartoneloses têm sido negligenciadas pela comunidade médica e muitos dos casos não são, desse modo, diagnosticados.
Aspectos clínicosDentre as 16 espécies de Bartonella que são patogênicas aos seres humanos, três são responsáveis pela maioria das manifestações clínicas: Bartonella bacilliformis, Bartonella quintana e Bartonella henselae.5,21
Até 1993, a B. bacilliformis foi considerada a única espécie desse gênero. É o agente etiológico da doença de Carrión, anteriormente conhecida como a única bartonelose. A B. bacilliformis é transmitida por fêmeas de Lutzomyia verrucarum, endêmicas nas regiões de grandes altitudes dos Andes peruanos e regiões do Equador e Colômbia.
Relatos nas últimas décadas de surtos em regiões de altitude atípica sugerem fortemente potencial de expansão da área epidemiológica. As mudanças climáticas atuais associadas a atividades humanas têm contribuído para o ressurgimento da infecção e sua expansão para novas áreas. Alterações do clima afetam a distribuição dos vetores e, além disso, fenômenos como o El Niño tem provocado o aumento dos níveis de umidade, favorecendo a reprodução dos vetores e a ocorrência de surtos.22,23 Alguns estudos realizados com animais para a busca de potenciais novos hospedeiros mostraram que algumas espécies de macacos presentes nas selvas da América do Sul, como o macaco‐da‐noite (Aotus infulatus) são suscetíveis a infecção por B. bacilliformis. Esses dados alertam para o risco da expansão doença de Carrión pela possível adaptação de vetores em áreas habitadas por estes animais, que podem atuar como facilitadores para a dispersão em áreas vizinhas às regiões endêmicas, inclusive no Brasil.24
Bifásica, a doença tem uma fase aguda (febre de Oroya) caracterizada por febre, anemia hemolítica e imunodeficiência transitória, e uma fase crônica (verruga peruana) expressa por lesões cutâneas vasoproliferativas.1,25
A fase aguda da doença tem duração de uma a quatro semanas e a gravidade pode variar de leve a fatal. A ausência de tratamento com antibióticos pode levar a uma taxa de mortalidade de até 88%. É decorrente da invasão massiva de eritrócitos e conduz inicialmente a sintomas não específicos como mal‐estar, sonolência, cefaleia, calafrios, febre, anorexia e mialgia, que vão tornando o paciente cada vez mais ictérico e confuso. Na medida em que a doença progride, um grave quadro hemolítico acompanhado de linfadenopatia e hepatoesplenomegalia se estabelece. O agravamento do caso pode acarretar desconforto respiratório agudo, derrame pericárdico, miocardite, endocardite, delírio, convulsões, coma e falência múltipla de órgãos.1,9,25
Após cerca de dois meses da fase febril aguda (que pode não ocorrer, sobretudo em nativos da região endêmica), aparece a verruga peruana, uma manifestação cutânea eruptiva constituída de lesões angiomatosas, na maioria das vezes muito semelhantes clínica e histologicamente às lesões de angiomatose bacilar (AB). Essas lesões são papulosas, papulotumorais ou nodulares. Aparecem em surtos, predominantemente na face e nas extremidades, e têm de 0,2 a 4cm de diâmetro. Podem persistir por meses ou até anos e ser acompanhadas de febre, dores ósseas e/ou articulares. A gravidade da erupção é variável e parece não estar relacionada ao tratamento antibiótico prévio. Essa é a fase tecidual da doença de Carrión e é autolimitada.26 Embora não seja fatal, se não tratada, estas lesões persistem como reservatórios do patógeno e como fonte de contágio via vetor. Geralmente é tratada com rifampicina, embora a estreptomicina também seja eficaz e tenha sido a droga de escolha antes de 1975. A verruga peruana não responde ao tratamento com cloranfenicol ou penicilina. Alternativas de tratamento são ciprofloxacina e azitromicina, combinadas com deflazacorte.27 Não deixa cicatrizes, exceto quando as lesões se infectam secundariamente.28,29
Histologicamente, as lesões da verruga peruana mostram proliferação de células endoteliais da vasculatura terminal da derme e subcutâneo. Importante achado é o infiltrado inflamatório, agudo e crônico, mesmo em lesões não ulceradas, que acompanha a presença de B. bacilliformis no interstício e no interior das células endoteliais. As lesões podem ter vasos mais diferenciados e ectásicos, clínica e histologicamente semelhantes ao granuloma piogênico. Atipias celulares podem ser encontradas, especialmente em lesões mais sólidas, com luzes inaparentes e células fusiformes que lembram o sarcoma de Kaposi.30
A B. quintana foi primeiramente associada à febre das trincheiras (FT), caracterizada por episódios febris recorrentes. Atualmente, relatada em andarilhos, alcoólicos e pacientes com AIDS nos Estados Unidos e na Europa, a doença tem sido considerada reemergente e responsável por quadros de bacteremia crônica, endocardite e angiomatose bacilar. Os humanos são os únicos reservatórios conhecidos, e a transmissão entre eles se dá pelo piolho do corpo, razão pela qual esse patógeno está fortemente associado a más condições sanitárias e de higiene pessoal.31 A doença, também conhecida como febre quintana ou dos cinco dias, tem período de incubação de 15 a 25 dias. A FT pode ser desde assintomática até doença grave. Aproximadamente metade dos infectados tem um quadro gripal de instalação abrupta, sem sintomas respiratórios e de curta duração. Pode ocorrer febre alta e prolongada por semanas. Os sintomas sofrem remissão por vários dias e, após esse período assintomático, pode haver exacerbação clínica paroxística três a cinco vezes, ou mais, em aproximadamente um ano.30 Lesões eritematosas, maculopapulares, de até 1cm no tronco ocorremem 80% a 90% dos pacientes.32 Língua saburrosa, enantema conjuntival e dor no aparelho locomotor frequentemente acompanham o quadro.33
A B. henselae é um agente zoonótico que tem nos gatos domésticos o reservatório principal. A transmissão entre os gatos não se dá na ausência de pulgas, embora a transmissão a humanos seja frequentemente associada à arranhadura dos gatos. A figura 1 mostra a arranhadura de gato apresentada por um homem de 28 anos, diabético Tipo I, há 3 dias com náuseas e vômitos e há um dia com rebaixamento do nível de consciência. Foi recebido com Glasgow 3 e com sepse de origem desconhecida. Havia duas lesões que sugeriam arranhaduras. A infecção por Bartonella sp. foi detectada por Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) convencional para região do Espaço Interno Transcrito (ITS) a partir de amostra sanguínea.
O contato com gatos é relatado como fator de risco para infecção por B. henselae.34 Gatos que vivem em regiões geográficas quentes e úmidas têm um número maior de potenciais vetores e maiores níveis de bacteremia (7%–43%) e de soroprevalência anti‐B. henselae (4%–81%).25,35 Isso sugere que a infecção por Bartonella sp. deva ser mais prevalente em países tropicais em desenvolvimento. Em Campinas, SP, Brasil, 90,2% dos gatos envolvidos no estudo apresentou positividade no teste para presença de DNA da B. henselae no sangue.36
Além dos gatos, outros animais de estimação que já foram descritos como reservatórios são porquinhos da índia, coelhos e cães.37
Os carrapatos foram comprovados como potenciais vetores,37 e o contato com esses artrópodes foi associado à infecção por Bartonella sp. nos doadores de sangue do Hemocentro da Unicamp (Campinas, SP).34
Pacientes imunocompetentes infectados com B. henselae podem desenvolver a doença da arranhadura do gato (DAG), que é caracterizada por uma linfadenite regional autolimitada associada à febre.
Para Bass et al.,38 em sua revisão, a incidência da DAG é proporcional à densidade da população de gatos, à idade deles e à exposição dos humanos a esses animais. Os autores também relacionam a incidência da doença à prevalência e ao grau da infestação por pulgas, Ctenocephalides felis, a climas quentes e úmidos, relacionados com posição geográfica e sazonalidade, reforçando que a doença seja mais prevalente em regiões tropicais.
A linfadenite é precedida da lesão primária, de poucos dias até várias semanas após a arranhadura ou mordedura do gato, supostamente pela exposição dérmica às bactérias presentes nas fezes das pulgas dos felinos. Esta se caracteriza por uma pápula eritematosa, não pruriginosa, no local do trauma ou numa extremidade deste, quando se trata de arranhadura. Em dois a três dias torna‐se vesiculosa e crostosa, permanecendo por alguns dias, involuindo para uma mácula que pode ter de dois a três meses de duração. A lesão persiste por 7–21 dias ou mesmo permanece durante a linfonodomegalia. Raras vezes, a lesão cutânea é a única expressão clínica, mesmo havendo antecedente da arranhadura ou mordedura. A presença da lesão de inoculação deve ser exaustivamente procurada na história e no exame físico, pois o índice de encontro da lesão primária pode chegar a mais de 90%.25 Após esse período pode haver uma cicatriz superficial, lembrando a cicatriz deixada pela varicela. Seu tamanho é de poucos milímetros a 1 cm de diâmetro.30
A histopatologia das lesões cutâneas simula a dos linfonodos, constituindo‐se de formação de granulomas com área necrótica central, circundadas por linfócitos e histiócitos e com infiltrado neutrofílico. O pus pode estar loculado, o que tem importância durante a aspiração. Difere das demais doenças granulomatosas porque nessas não é comum o encontro de microabcessos e granulomas concomitantemente.39 Os achados histopatológicos em linfonodos podem ser confundidos com aqueles encontrados na doença de Hodgkin, inclusive com células semelhantes às de Reed‐Stenberg.40 Podem ser observados microabscessos onde clusters bacterianos podem ser identificados pela coloração de Warthin‐Starry, sobretudo nas lesões mais novas.26
Púrpura, embora rara, pode ser grave.41 Exantema maculopapular, eritema multiforme e eritema nodoso são para Warwick42 as expressões cutâneas que acompanham a DAG. Para esse autor, o eritema nodoso é o mais frequente deles, no que concorda Carithers,43 que não considera uma surpresa essa associação, já que o eritema nodoso aparece no curso de outras doenças granulomatosas, como tuberculose e sarcoidose. Eritema nodoso pode acontecer associado a quadros típicos, mas usualmente acontece acompanhando linfonodomegalia difusa e não regional.44
A B. henselae também causa um amplo espectro de condições clínicas, como febre de origem indeterminada, manifestações esplênicas e hepáticas, encefalopatias, doenças oculares, endocardites, dentre outras.1
Pacientes infectados por B. quintana ou B. henselae, especialmente aqueles imunodeficientes, podem desenvolver angiomatose bacilar, que é caracterizada por lesões angioproliferativas.21 Especificamente nos casos de infecção por B. henselae, estas lesões podem também ser associadas à peliose, uma rara condição caracterizada por pequenos espaços císticos preenchidos com sangue presentes no fígado, frequentemente diagnosticada apenas por biópsia, podendo causar insuficiência ou ruptura hepática e até mesmo ser fatal.21,45 A peliose bacilar pode acometer também outros órgãos.46
Lesões cutâneas são a principal manifestação da angiomatose bacilar, mas a doença pode acontecer sem comprometer a pele em até 45% dos casos.47 Podem ser lesões solitárias; no entanto, mais frequentemente, são múltiplas e dispersas pelo corpo. Podem ser pápulas, placas, tumores angiomatosos, raramente hiperqueratóticos, ou nódulos com superfície normocrômica. Colarete descamativo da base da lesão é característico. São semelhantes ao granuloma piogênico. Friáveis, podem sangrar fácil e abundantemente. A apresentação como placas enduradas e hiperpigmentadas é menos frequente. Há descrições de comprometimento de mucosa oral, anal, conjuntival, gastrintestinal, genital feminina e de vias aéreas. A AB pode ser acompanhada por doença visceral disseminada tanto em imunodeficientes quanto em imunocompetentes.38,48,49 A figura 2 mostra o caso de lesão angiomatosa única no terceiro interdígito da mão direita de uma mulher de 26 anos, com febre, candidíase oral e emagrecimento há 2 meses. A sorologia anti‐HIV foi reagente. O exame anátomo‐patológico foi compatível com angiomatose bacilar e à coloração de Warthin‐Starry observaram‐se clumps bacterianos. Bacilos Gram‐negativos foram observados por microscopia eletrônica de transmissão de fragmento cutâneo.
O diagnóstico diferencial com sarcoma de Kaposi pode ser clinicamente impossível, sobretudo com lesões sarcomatosas recentes. As duas doenças podem coexistir. Quaisquer outras lesões angiomatosas fazem diagnóstico diferencial.26,30
Histologicamente são expressas por três características principais: 1) Angioproliferação disposta em lóbulos, com vasos formados por células endoteliais proeminentes; em áreas de celularidade mais densa, podem ser observadas atipias e mitoses; 2) Predomínio de neutrófilos no infiltrado celular e ocasional leucocitoclasia; 3) Presença de clumps bacterianos intersticial ou intracelular encontrados à coloração de Warthin‐Starry, imuno‐histoquímica, à microscopia eletrônica de transmissão ou microscopia confocal.26,30,50
Foi aventado que a diferença entre a resposta angiogênica e granulomatosa, observadas na AB e na DAG, respectivamente, parece ser determinada pelo grau de imunocompetência do hospedeiro.51,52 A concomitância de lesões com características clínico‐patológicas da DAG e da AB, também relatada após o uso de corticosteroides, com a demonstração de um mesmo agente, colabora com a essa interpretação.53
As Bartonella spp. podem causar bacteremia cíclica assintomática em humanos e animais. Essa infecção crônica pode resultar potencialmente em endocardite e ser fatal.1 Cerca de 31% das endocardites são cultura‐negativa e, dessas, até 30% são causadas por Bartonella spp.20 Seis espécies de Bartonella foram associadas à endocardite, mas 95% das endocardites por esses agentes são causadas por B. quintana ou B. henselae.54 Vasculites podem acontecer e, inclusive, simular quadros de vasculite sist