A hanseníase é doença infecciosa endêmica no Brasil, relacionada a precárias condições de vida. Apesar de curável, é doença negligenciada, conferindo sério problema de saúde pública. A literatura carece de análises amplas e recentes da patologia.
ObjetivosO estudo visa descrever e analisar o perfil clínico‐epidemiológico dos pacientes com hanseníase nas grandes regiões brasileiras e comparar com os indicadores sociodemográficos regionais.
MétodosEstudo observacional ecológico, descritivo e analítico, realizado por meio da coleta de dados secundários no Sistema de Informação de Agravos e Notificação no período de 2014 a 2019, Censo de 2010 e estimativas populacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
ResultadosForam notificados 215.155 novos casos e observou‐se manutenção da taxa de detecção anual em quatro regiões brasileiras, com apenas o Sul apresentando decréscimo significante. A maior taxa se deu no Centro‐Oeste, e a menor no Sul. O perfil predominante foi sexo masculino, entre 60 e 79 anos, alfabetizados e etnia pretos e pardos. Houve predomínio da forma dimorfa, multibacilar, mais de cinco lesões cutâneas e grau de incapacidade zero no diagnóstico. A baciloscopia não foi realizada em 42,8% dos casos e a cura foi o desfecho em 77%.
Limitações do estudoA utilização de dados secundários e o intervalo de tempo estudado, restringido pela plataforma fonte dos dados e pela pandemia da COVID‐19.
ConclusõesMostra‐se um problema de saúde pública perpetuado, principalmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro‐Oeste, associado a indicadores socioeconômicos e apresenta perfil clínico‐epidemiológico que favorece a transmissão do bacilo.
A hanseníase se caracteriza como uma doença infectocontagiosa causada pelo Mycobacterium leprae (M. leprae), conhecido como bacilo de Hansen, e Mycobacterium lepromatosis (M. lepromatosis). Uma das doenças mais antigas da humanidade, com relatos há mais de 3.000 anos, cuja descrição do agente etiológico ocorreu pela primeira vez em 1873 pelo médico norueguês Gerhard Armauer Hansen.1
O parasita é bacilo intracelular obrigatório, álcool‐ácido resistente que se multiplica lentamente e não se prolifera in vitro, o que dificulta a obtenção de conhecimento científico acerca dele.2 O bacilo, apesar de apresentar baixa patogenicidade, apresenta alta infectividade,3 afinidade por células cutâneas e nervos periféricos, com tempo de multiplicação lento, durando de 11 a 16 dias.3 Estima‐se que o período de incubação da doença dure em média cinco anos.2 A infecção tem como principal fonte os indivíduos doentes não tratados e com alta carga bacilar, que excretam o bacilo através das vias aéreas superiores, que também funcionam como porta de entrada no indivíduo suscetível. A transmissão se dá pelo contato direto entre indivíduos e é facilitada pelo convívio de suscetíveis com doentes não tratados. A via hematogênica é o mecanismo de disseminação para a pele, nervos, mucosas e outros tecidos.2 A suscetibilidade à bactéria apresenta forte influência genética, de modo que familiares de indivíduos com hanseníase têm maior chance de adoecer.
A hanseníase manifesta‐se por meio de sinais e sintomas dermatoneurológicos marcantes, como lesões de pele e nervos periféricos. Existem quatro formas clínicas descritas: indeterminada, tuberculoide, virchowiana e dimorfa, esta subdivida em dimorfa‐tuberculoide, dimorfa‐dimorfa e dimorfa‐virchowiana. Há ainda a forma hanseníase neural primária ou pura, que não expressa lesões cutâneas e, apesar de não constar como forma clínica própria na ficha de notificação da patologia, representa até 10% do total de casos.3 A doença é grave, podendo o infectado evoluir com diversos graus de incapacidades físicas e deformidades, muitas vezes irreversíveis, que acarretam em diversos problemas nas esferas sociais, profissionais e psicológicas.3 Todavia, visto que a doença tem peculiaridades bem definidas, o diagnóstico é simples na maioria dos casos: dá‐se pela anamnese e exame físico com auxílio ou não do exame de baciloscopia2 e o diagnóstico correto e precoce propicia a cura e a interrupção da cadeia transmissora da doença. O tratamento é eficaz e disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde.2
A hanseníase é doença quase exclusiva do mundo em desenvolvimento, associada a más condições socioeconômicas, pobreza, falta de acesso a condições adequadas de moradia, alimentação, saúde e educação.2 Enquadrada como doença negligenciada que atinge áreas da Ásia, África e América Latina,4 três países concentram cerca de 80% dos casos: Índia (56,6%), Brasil (13,8%) e Indonésia (8,6%). A doença é endêmica no Brasil, um problema de saúde pública que precisa ser superado. O país é responsável por mais de 90% dos novos casos de infecção em toda a região das Américas. Integrante da Lista Nacional de Notificação Compulsória de Doenças, Agravos e Eventos de Saúde Pública (Portaria de Consolidação MS/GM n° 4, de 28 de setembro de 2017), entre 2014 e 2019 foram diagnosticados 215.155 casos novos.5,6
Tendo em vista a posição brasileira no tocante à prevalência no panorama mundial, é notório que estudos com dados atuais precisam ser realizados, buscando traçar o perfil clínico‐epidemiológico da hanseníase nos dias de hoje. Como a incidência da doença apresenta associação positiva com fatores socioeconômicos,7 é fundamental relacionar a epidemiologia com os indicadores sociais de cada região pelo fato de nosso país ter dimensões continentais, dividido em áreas com distintas condições climáticas e sociais.
Dessa maneira, a presente pesquisa buscou comparar o perfil clínico‐epidemiológico da hanseníase nas diferentes regiões do Brasil, segundo sexo, faixa etária, cor ou raça e analfabetismo; analisar a distribuição da hanseníase nas cinco regiões brasileiras; e correlacionar a taxa de detecção anual da hanseníase com indicadores socioeconômicos das regiões.
MétodosDelineamento e área de estudoTrata‐se de estudo observacional do tipo ecológico, descritivo e analítico, por meio de coleta de dados secundários. A população da pesquisa foi formada pelos novos casos de hanseníase diagnosticados e cadastrados na plataforma do SINAN e ferramenta TABNET durante o período de 2014 a 2019. Tal intervalo foi delimitado tendo em vista a atualização do SINAN e TABNET em 2014, que visou melhorar a qualidade dos dados, de modo que os dados anteriores estejam sujeitos a imprecisão, e em virtude das distorções causadas pela pandemia de COVID‐19 nos números de casos novos em 2020 e 2021.
Fonte de dados e variáveisNeste estudo, utilizaram‐se os dados dos pacientes residentes no Brasil cujo novo diagnóstico fora cadastrado no SINAN e TABNET no período de 2014‐2019 para a análise temporal. Foram excluídos todos os casos que não continham as variáveis de interesse para a pesquisa.
A coleta de dados foi realizada por meios virtuais, pelo site do SINAN na página de “Indicadores e Dados Básicos de Hanseníase nos Municípios Brasileiros” ‐ http://indicadoreshanseniase.aids.gov.br, onde se encontram dados do SINAN, Ministério da Saúde (MS) e Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) e no site do DATASUS, pela da página do TABNET “Casos de Hanseníase ‐ Desde 2001 (SINAN)” ‐ http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinannet/cnv/hanswbr.def. Em seguida, foram selecionadas as cinco regiões brasileiras e as variáveis de interesse: sexo do indivíduo, faixa etária, cor ou raça, analfabetismo, forma clínica, classificação operacional, baciloscopia, lesões cutâneas, tipo de saída, grau de incapacidade e ano do diagnóstico.
Já os dados populacionais e socioeconômicos de cada região foram obtidos a partir do último censo nacional completo disponível, que atualmente é o de 2010, apresentado no site Censo 2010 do IBGE (https://censo2010.ibge.gov.br), e também a partir da mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), encontrada também no site do IBGE (https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9127‐pesquisa‐nacional‐por‐amostra‐de‐domicilios.html?=&t=resultados).
Os dados foram transformados em taxa de detecção anual de novos casos para os casos totais e taxa de detecção média entre 2014 e 2019 para as variáveis analisadas, todas calculadas por 100 mil habitantes, para o Brasil e Grandes Regiões.
Ressalta‐se a impossibilidade do cálculo da taxa de detecção média de novos casos segundo cor ou raça na classificação “ignorado/branco” pela inexistência de dados dessa população no Censo.
Análise estatísticaOs dados foram organizados por meio do programa Google Sheets e obteve‐se a distribuição das variáveis em valores absolutos e proporções (%). A frequência dos casos foi transformada em taxa de detecção anual e média, de acordo com as variáveis de interesse da pesquisa, para a comparação da incidência entre cada macrorregião e o Brasil. O risco relativo (RR) foi calculado para as variáveis sexo, raça e analfabetismo segundo as taxas de detecção.
Realizou‐se a análise estatística pelo programa IBM Statistical Package for the Social Sciences versão 23.0 (SPSS 23.0®). As tendências temporais foram analisadas por meio da variação média anual de cada categoria, taxa de incremento anual, regressão linear (coeficiente beta) e coeficiente de correlação de Spearman. A investigação da existência de associação entre as variáveis foi realizada por meio de regressão linear e correlação de Spearman. Análise bivariada com cálculo de R2 (coeficiente de correlação) foi utilizada para os resultados da série temporal. Valores de p <0,05 foram considerados estatisticamente significantes.
ResultadosO Brasil é o quinto país mais populoso do mundo, com população estimada em 204.860.101 habitantes (hab) segundo levantamento realizado em 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Índice de Desenvolvimento Humano Médio (IDHM) de 0,724 segundo último dado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, calculado em 2010. O país é dividido em cinco grandes regiões. A Região Norte tem população estimada em 17.523.777, e IDHM de 0,667. A Região Nordeste tem população estimada em 56.640.710 e o menor IDHM do país − 0,663. A Região Sul tem população estimada em 29.290.154 e IDHM de 0,754. A Região Sudeste, mais populosa e mais desenvolvida, apresenta população estimada em 85.916.158 e IDHM de 0,766. A Região Centro‐Oeste tem a menor população entre as regiões, estimada em 15.489.302, e IDHM de 0,757.
No período de 2014 a 2019, foi notificado um total de 215.155 casos novos de hanseníase no Brasil (tabela 1), assim distribuídos: 41.666 no Norte, 91.623 no Nordeste, 44.988 no Centro‐Oeste, 29.855 no Sudeste e 6.976 no Sul. A maior taxa de detecção anual de novos casos nacional se deu em 2018 com 17,94/100.000 hab, e a menor em 2016, de 15,78/100.000 hab.
Taxa de detecção anual de novos casos de hanseníase por 100 mil habitantes. Brasil e Regiões, 2014‐2019
Ano/região | Brasil | Norte | Nordeste | Sudeste | Sul | Centro‐Oeste |
---|---|---|---|---|---|---|
2014 | 18,76 | 41,76 | 29,07 | 6,39 | 4,48 | 50,73 |
2015 | 17,59 | 37,98 | 27,66 | 5,99 | 4,45 | 46,99 |
2016 | 15,78 | 36,72 | 24,32 | 5,59 | 3,8 | 40,03 |
2017 | 17,04 | 38,57 | 27,15 | 5,56 | 3,7 | 44,69 |
2018 | 17,94 | 42,2 | 26,83 | 5,54 | 3,63 | 53,95 |
2019 | 17,85 | 40,51 | 26,7 | 5,68 | 3,76 | 54,05 |
Média | 17,49 | 39,62 | 26,95 | 5,79 | 3,97 | 48,41 |
IA | −0,007 | −0,004 | −0,014 | −0,023 | −0,032 | 0,021 |
β | −0,119 | 0,201 | −0,397 | −0,782 | −0,849 | 0,406 |
p‐valor | 0,823 | 0,703 | 0,436 | 0,066 | 0,032 | 0,425 |
Fonte: IBGE ‐ DATASUS, adaptado pelos autores, 2023.
IA, incremento anual; β, índice beta.
Na tabela 1 é possível identificar a taxa de detecção anual de novos casos notificados de hanseníase por ano durante o período estudado. Observou‐se um pequeno declive na taxa de detecção na população brasileira de 18,76/100.000 hab em 2014 a 17,85/100.000 hab em 2019, com Incremento Anual (IA) negativo (−0,7%), sem significância estatística. Foram verificadas claras diferenças na distribuição das taxas de detecção anual entre as regiões do país, com taxas hiperendêmicas no Centro‐Oeste, taxas muito altas no Norte e Nordeste e médias taxas no Sudeste e Sul. A taxa mais alta apresentada no período foi 54,05 em 2019 no Centro‐Oeste; em contrapartida, a menor foi 3,63 em 2018 no Sul. O Centro‐Oeste foi a única região a apresentar IA positivo (2,1%), o que evidencia aumento médio. Na sequência, Norte (IA −0,4%), Nordeste (IA −1,4%), Sudeste (IA −2,3%) e, por fim, a Sul (IA −3,2%) constando a menor taxa encontrada e decrescimento significante na taxa de detecção (p=0,032). As demais regiões apresentaram tendência de estabilidade do indicador (p >0,05).
Na análise de correlação de Spearman entre as variáveis “ano” e “casos novos no Brasil”, a qual foi utilizada para o cálculo da taxa de detecção anual, observou‐se correlação negativa (−0,086) sem significância estatística (p> 0,05). A análise bivariada com cálculo de R2 (coeficiente de correlação=0,014) para as mesmas duas variáveis também não apresentou significância estatística. Assim, as correlações demonstram que as taxas permaneceram estáveis ao longo do período.
Com relação às características epidemiológicas (tabela 2), observou‐se que a maioria notificada fora do sexo maculino (56,59%), apresentando risco relativo quase 40% maior do que o sexo feminino (RR=1,39; Intervalo de Confiança [95% IC: 10,29‐10,48]; p <0,00001). A faixa etária mais acometida foi a de 40‐59 anos com 62.876 casos totais; já a maior detecção encontrada foi entre 60 e 79 anos, com taxa de 28,14/100.000 hab. A etnia majoritária é preta e parda (71,98%), consecutiva da branca (23,24%) e uma minoria amarela (1,16%). No que concerne o âmbito do aprendizado, a taxa de detecção no Brasil foi maior nos indivíduos analfabetos, abrangendo 8,99% da população infectada, com taxa de 28,62/100.000 hab, compreendendo risco quase 40% maior que os alfabetizados (RR=1,38; 95% IC: 1,29‐1,45; p <0,0001).
Taxa de detecção média (×100.000) de hanseníase segundo sexo, raça, faixa etária e analfabetismo. Brasil e Regiões, 2014‐2019
Variável/região | Brasil | Norte | Nordeste | Sudeste | Sul | Centro‐Oeste |
---|---|---|---|---|---|---|
Sexo | ||||||
Masculino | 20,73 | 47,73 | 31,23 | 6,70 | 4,74 | 55,39 |
Feminino | 14,86 | 31,79 | 23,21 | 4,69 | 2,88 | 42,60 |
Raça | ||||||
Brancos | 9,01 | 25,14 | 15,72 | 4,48 | 3,45 | 36,97 |
Pretos e Pardos | 22,88 | 41,60 | 28,53 | 6,50 | 4,98 | 53,16 |
Amarelo | 41,58 | 337,78 | 158,72 | 5,37 | 54,28 | 70,94 |
Indígena | 20,54 | 25,30 | 20,79 | 5,90 | 3,33 | 105,83 |
Faixa Etária | ||||||
0‐14 anos | 4,28 | 11,60 | 7,88 | 1,04 | 0,24 | 6,17 |
15‐39 anos | 13,75 | 34,06 | 21,01 | 4,08 | 2,41 | 36,28 |
40‐59 anos | 25,22 | 58,97 | 40,01 | 11,62 | 5,79 | 74,66 |
60‐79 anos | 28,14 | 70,14 | 53,64 | 10,04 | 8,21 | 77,47 |
80 ou mais | 18,15 | 46,67 | 35,50 | 5,76 | 4,88 | 45,08 |
Analfabetismo | ||||||
Ignorado/branco | 3,82 | 7,11 | 7,16 | 1,45 | 0,75 | 7,91 |
Não (> 15 anos) | 20,71 | 48,92 | 32,87 | 6,74 | 5,15 | 66,53 |
Sim (> 15 anos) | 28,62 | 56,83 | 28,06 | 11,97 | 10,23 | 80,67 |
Fonte: IBGE e DATASUS, adaptado pelos autores, 2023.
No que diz respeito às características clínicas e evolução da doença (tabela 3), observa‐se que a manifestação da forma dimorfa (48,48%) é a mais comum, sucedida da virchowiana (17,59%) e o restante dos casos divididos entre as formas indeterminada e tuberculoide. A classificação operacional multibacilar é a mais prevalente (75,75%) e incidente ‐ 79,55 por 100 mil hab. No que tange a baciloscopia, em 42,80% dos casos não foi realizada ou foi ignorada, 31,48% resultaram negativa e 25,72% positiva. Sobre as lesões dermatológicas, 36,63% dos pacientes exibiram mais de cinco lesões cutâneas acometidas pela micobactéria, com taxa de 38,47 por 100 mil hab; 29,56% entre duas e cinco lesões e 21,41% manifestaram apenas uma lesão, correspondente às taxas de 31,05 e 22,48, respectivamente. A inexistência de lesões (informado 0) e lesões não informadas (informado 99) equivalem a 12,40%.
Características de apresentação clínica e desfecho da hanseníase. Brasil, 2014‐2019
Variável | Frequência (n=215.155) | % | Taxa (×100.000) |
---|---|---|---|
Forma clínica | |||
Indeterminada | 25.909 | 12,04% | 12,65 |
Tuberculoide | 27.633 | 12,84% | 13,49 |
Dimorfa | 104.300 | 48,48% | 50,91 |
Virchowiana | 37.851 | 17,59% | 18,48 |
Não classificada/ignorado | 19.462 | 9,05% | 9,5 |
Classificação operacional | |||
Paucibacilar | 51.870 | 24,11% | 25,32 |
Multibacilar | 162.971 | 75,75% | 79,55 |
Baciloscopia | |||
Positivo | 55.337 | 25,72% | 27,01 |
Negativo | 67.729 | 31,48% | 33,06 |
Não realizado/ignorado | 92.089 | 42,80% | 44,95 |
Lesões cutâneas | |||
Informado 0 ou 99 | 26.675 | 12,40% | 13,02 |
Lesão única | 46.056 | 21,41% | 22,48 |
2 a 5 lesões | 63.606 | 29,56% | 31,05 |
> 5 lesões | 78.818 | 36,63% | 38,47 |
Tipo de Saída | |||
Cura | 166.396 | 77,34% | 81,22 |
Transferidos | 18.417 | 8,56% | 8,99 |
Óbito | 3.552 | 1,65% | 1,73 |
Abandono | 14.407 | 6,70% | 7,03 |
Erro diagnóstico | 3.582 | 1,66% | 1,75 |
Não preenchido | 8.801 | 4,09% | 4,3 |
Grau de incapacidade | |||
Grau zero | 117.917 | 54,81% | 57,56 |
Grau I | 52.779 | 24,53% | 25,76 |
Grau II | 18.067 | 8,40% | 8,82 |
Não avaliado/ignorado | 26.392 | 12,27% | 12,88 |
Fonte: IBGE e DATASUS, adaptado pelos autores, 2023.
A predominante parte das evoluções se deu em forma de cura da enfermidade (tabela 3), avaliado em 77,34%. Outros tipos de evoluções foram as transferências com 8,56% dos casos e taxa de 8,99; abandonos 6,70% dos casos e taxa de 7,03; não preenchidos 4,09% dos casos e taxa de 4,3. As ocorrências de óbito e erro de diagnóstico caracterizaram a menoridade, 1,66% dos casos cada um, com taxas médias de 1,74. Os graus de incapacidade física encontrados em 54,81%, 24,53% e 8,40% dos pacientes no momento do diagnóstico foram respectivamente grau 0, 1 e 2, e 12,27% dos casos não apresentaram grau de incapacidade avaliada.
DiscussãoO presente estudo objetivou analisar a detecção, tendência temporal, perfil clínico e epidemiológico e desempenho dos indicadores sociais da hanseníase no território brasileiro e suas regiões. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estipulou a eliminação da enfermidade, preconizando menos de um caso por 10 mil habitantes até 2020.8 Apesar da discreta queda global do coeficiente de detecção na população estudada, apenas as regiões Sul e Sudeste atingiram a meta, mesmo o Brasil tendo proposto há três décadas a eliminação da hanseníase como problema de saúde pública.9
Os parâmetros dos indicadores de monitoramento de progresso e eliminação da hanseníase do MS classificam a situação de endemicidade conforme a taxa de detecção de novos casos em: hiperendêmico ≥ 40/100 mil hab; muito alto 20‐39,99/100 mil hab; alto 10‐19,99/100 mil hab; médio 2‐9,99/100 mil hab; e baixo <2/100 mil hab.10 Com isso, podemos listar as regiões da maior para menor endemicidade, iniciando pelo Centro‐Oeste, classificado como hiperendêmico com taxa de detecção média de 48,41/100 mil hab, sucedido do Norte e Nordeste, classificados como muito alto, com 39,62 e 26,95/100 mil hab, respectivamente, Sudeste com 5,79/100 mil hab e o Sul com 3,97/100 mil hab, ambas regiões nos parâmetros médios.
Os altos índices encontrados nas regiões Centro‐Oeste, Norte e Nordeste devem‐se à dificuldade do controle da doença e detecção tardia dos casos,4 comprovada pelo principal indicador de diagnóstico tardio, o grau de incapacidade física II no momento do diagnóstico. Dos 18.067 casos diagnosticados com esse grau, 37,5% ocorreram na região Nordeste. Tais resultados também foram encontrados em estudos anteriores.11,12 Acrescenta‐se que essas regiões têm os menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) e piores variáveis relativas ao saneamento (proporção de residentes em domicílios com fossa rudimentar e proporção de residentes em domicílios abastecidos com água de poço), métricas que evidenciam pior condição de vida, o que está associada a maiores taxas da doença.13 Ademais, os estados que compõem a chamada Amazônia Legal, área de risco para a hanseníase pelo modo de ocupação territorial e índices de condições de vida, são todos dessas regiões.11
As maiores taxas médias de detecção anual de novos casos de hanseníase por 100 mil hab foram de 48,41 no Centro‐Oeste e 39,62 no Norte, configurando números, respectivamente, 2,77 e 2,26 vezes maior do que a média nacional no período. Tais regiões se configuram como áreas de risco há décadas11 e foram alvos de migração interna a partir de 1970 estimulada pelo governo brasileiro com a modernização agrícola e construção de rodovias.14 Aliado à sobrecarga e ausência de infraestrutura, a hanseníase começou a ganhar força nessas regiões. As menores taxas médias de detecção anual foram encontradas nas regiões Sul (3,97) e Sudeste (5,79), bem aquém da média nacional de 17,49 casos por 100 mil hab. Esse achado mostra uma continuidade com estudos mais antigos, cujos resultados também apontaram essas peculiaridades.11,12 A relação da doença com condições socioeconômicas é inquestionável. Estudos brasileiros já demonstraram relação significante entre baixo IDH e a doença em regiões distintas do país.13,15 Desse modo, como previsto, as duas regiões brasileiras mais desenvolvidas apresentaram as menores taxas. Entretanto, necessita‐se acrescentar indicadores como maior temperatura e umidade, maior presença de pacientes bacilíferos nas regiões endêmicas e suscetibilidade genética aos fatores associados às altas taxas da doença.16,17 As regiões com maiores taxas são as menos desenvolvidas, com espaços urbanos mais fragilizados, aglomeração populacional e maior vulnerabilidade econômica. Assim, a conjuntura nacional proporciona a exposição, contaminação e persistência da condição, e ainda concebe casos autóctones e importados.4
Percebeu‐se a predominância do sexo masculino, presumidamente justificado pelo fato de homens se exporem mais a ambientes de risco, terem maior contato social e dispensar menor cuidado à saúde que o sexo feminino, fenômeno ocorrido nos demais estudos de hanseníase no Brasil.18,19,20 A suscetibilidade genética e interferência hormonal na resposta imune ao bacilo são fatores também investigados.21
Houve predomínio de casos na cor de pele negra, incluindo pretos e pardos, em todas as idades analisadas, concordante com outros estudos.21,22 Acredita‐se que esses grupos sejam mais acometidos em virtude do processo histórico de desigualdade social.22 A maior taxa de detecção se deu na etnia amarela, 41,58/100 mil hab, apresentando risco mais elevado que outras etnias. Na literatura internacional não há dados que embasem essa prevalência; sugere‐se no presente estudo, portanto, a baixa autodeclaração da cor amarela no Censo como a provável causa. A população indígena apresenta taxas muito altas, que podem ser atreladas ao ambiente, genética e modo de vida dessa população.23 Ressalta‐se o pequeno número de estudos voltados para esse coletivo, panorama prejudicial para essa população, visto as expressivas taxas e que a ausência de análise robusta atrasa possíveis intervenções.
Com relação à faixa etária definida pelo estudo, o intervalo de 40‐59 anos teve maior número de casos no total; contudo, a maior taxa de detecção ocorreu entre 60‐79 anos em todo o país. Esse dado infere que os indivíduos diagnosticados com hanseníase integram a população economicamente ativa e, sendo essa uma doença limitante e incapacitante, pode gerar prejuízo à economia. Vale ressaltar também que a população em maior risco é a dos idosos, conforme mostra a taxa de detecção, estando ligado ao longo período de incubação e ao declínio natural do sistema imunológico.21,24 Também é importante citar que casos em menores de 15 anos estão relacionados a pelo menos um caso confirmado na família; a possível contaminação pediátrica é sucedida na própria esfera familiar por falha no combate à cadeia de transmissão. Ressalta‐se que na infância há maior dificuldade diagnóstica, culminando em possíveis complicações da doença, diminuição do rendimento escolar e desenvolvimento do indivíduo pelo prejuízo físico e social.4 A detecção da hanseníase em menores de 15 anos é indicador de sinalização para manutenção da transmissão do bacilo,25 cujo pendor tem se mostrado decrescente nas regiões, o que é uma tendência nacional, e indicando, por conseguinte, a tendência à diminuição na incidência da doença em todo o território brasileiro.
A maioria dos indivíduos acometidos em números brutos foi composta pelos alfabetizados, e a maior taxa de detecção se deu nos analfabetos, realidade na maioria das regiões. Essa discrepância foi ainda maior nas regiões Sul e Sudeste, mais desenvolvidas, cuja taxa dos analfabetos representou cerca do dobro da taxa dos alfabetizados. Tendo em vista que pelo IBGE apenas 6,6% da população brasileira é analfabeta,26 a quantidade de analfabetos acometida é alarmante. Isso os torna uma população de risco; a baixa escolaridade e o analfabetismo são determinantes sociais desfavoráveis quanto à transmissão do bacilo de Hansen e à evolução para formas incapacitantes da doença por dificultar o reconhecimento da manifestação clínica e a compreensão da orientação do tratamento.7,19,20,24,27
No período analisado, houve predomínio da forma dimorfa, responsável por quase metade de todos os casos, seguida pela virchowiana, responsável por 17,59% do total. Tais formas também se mostraram dominantes em alguns trabalhos produzidos no Norte e Centro‐Oeste.24,28 Outras referências apontam a forma tuberculoide como mais incidente, principalmente em regiões endêmicas da doença.29 Assim, no Brasil, infere‐se que a forma clínica predominante varia de acordo com o local e suas características de endemicidade e transmissão.
A classificação operacional multibacilar configurou como grande maioria dos casos (75,75%), em consonância com diversos estudos.24,28,30 Esse achado, aliado ao aumento progressivo do número percentual de casos multibacilares no Brasil desde 2010, mostra‐se especialmente relevante visto que os indivíduos classificados como multibacilares são importantes fontes de contágio para a comunidade e manutenção da cadeia epidemiológica.2
Do total de casos notificados em todo o Brasil no período, apenas em 57,2% foram realizadas a baciloscopia, positivando em 45% dos exames, indicativo de maior risco de transmissão da doença.
Em relação às lesões cutâneas, tem‐se que 36,63% dos casos notificados eram compostos por pacientes que apresentavam mais de cinco lesões; 29,56% de duas a cinco lesões e 21,41% lesão única, padrão também encontrado em outros estudos.19,29 Ausência de lesões cutâneas e lesões não informadas são acopladas como informação única na base de dados, equivalente a 12,40%. Essa associação compromete a acurácia da frequência da hanseníase neural pura visto à impossibilidade de mensurar isoladamente a inexistência de acometimento cutâneo.
A grande maioria evoluiu para cura, o que significa que essa parcela finalizou de maneira correta o tratamento poliquimioterápico recomendado pelo MS,2 com porcentagem de 77,34%. Outros trabalhos também apontaram alta proporção de pacientes curados em Santa Catarina e Bahia em detrimento de baixas taxas de óbitos.19,31 Destaca‐se a significante porcentagem de abandono (6,7%), o qual pode estar relacionado a longa duração do mesmo, desconhecimento sobre a doença e sua evolução, descrédito na cura, falta de encorajamento, estigma social, reações hansênicas e ainda a distância entre a residência do paciente e o serviço de saúde.32 Esses pacientes devem ser resgatados de maneira a romper a cadeia transmissora, a resistência à poliquimioterapia e o surgimento de incapacidades físicas.2
A maior parte dos indivíduos com hanseníase não apresentava sequelas no diagnóstico, classificados como grau zero de incapacidade física. Essa proporção também se fez presente em estudos realizados em regiões hiperendêmicas, de muito alta e média endemicidade,19,29–31 demonstrando uma distribuição comum em território nacional, com algumas exceções que apontam o grau I como mais incidente.24,33 Cerca de 33% dos casos avaliados apresentaram incapacidade grau I ou grau II de comprometimento no diagnóstico, cursando respectivamente com diminuição da sensibilidade ou força muscular nas mãos, pés e/ou nos olhos para os pacientes grau I e deformidades físicas visíveis ou cegueira para os pacientes grau II.2 Esses graus atestam tempo de evolução da doença; grau II é evidência de diagnóstico tardio.
O vigente estudo apresentou algumas limitações inerentes à sua natureza. Primeiramente, a utilização de dados secundários pode apresentar inconsistências em virtude de o preenchimento das notificações depender de profissionais da saúde que possivelmente não receberam treinamento ou orientações padronizadas para preenchimento das fichas de notificação. Dados incompletos e “ignorado/branco”, sobretudo nos itens raça/cor e escolaridade, prejudicam o estudo acerca da epidemiologia. Outra questão fora o intervalo estudado, já que a plataforma fonte dos dados foi alterada e só apresenta dados mais completos e fidedignos a partir do ano inicial escolhido para a pesquisa. Ressalta‐se que o TABNET é um banco de dados com atualização contínua e pode apresentar diferenças em relação aos boletins epidemiológicos que cursam com dados fechados. Além disso, o estudo não pode ter duração maior em razão do isolamento social imposto pela pandemia da COVID‐19, o que gerou subdiagnóstico nos anos seguintes à sua eclosão.
ConclusãoA hanseníase permanece como problema de saúde pública no Brasil, evidenciado pela manutenção das taxas da doença em quatro das cinco grandes regiões, apresentando decréscimo apenas na região Sul no período estudado. As taxas elevadas nas regiões Norte, Nordeste e Centro‐Oeste conferem risco à população pela endemicidade perpetuada. No que tange os indicadores socioeconômicos, observou‐se que caminha igualitariamente ao disposto na literatura, com maior incidência em locais com menor IDH, piores índices de condições de vida e modo de ocupação territorial.
Os resultados encontrados no estudo indicam a necessidade da ampliação de medidas de controle da hanseníase e estratégias de intervenção a nível nacional, focando nas regiões de maior endemicidade. Deve‐se fortalecer a Estratégia Nacional para Enfrentamento da Hanseníase, enfrentar a doença e suas complicações e combater o estigma e a discriminação. A partir dos dados analisados, sugere‐se ênfase em ações voltadas para os grupos socioeconômicos inseridos no perfil de risco e especial atenção para o diagnóstico precoce mediante busca ativa de casos para tratamento e diminuição da transmissibilidade.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresAlícia de Siqueira Sczmanski: Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Lucas Pazin: Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Thiago Mamoru Sakae: Análise estatística; aprovação da versão final do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica do manuscrito.
Josete Mazon: Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.