A esporotricose é infecção fúngica crônica, granulomatosa e subcutânea, causada por fungos do gênero Sporothrix.1,2 A transmissão ocorre principalmente por meio do contato direto com solo ou matéria orgânica contaminada3,4 e por interação com animais infectados, especialmente gatos.1 A esporotricose pode manifestar‐se de maneira cutânea ou extracutânea, principalmente em pacientes imunocomprometidos.5
Trata‐se de estudo descritivo e observacional realizado no Serviço de Dermatologia da Universidade do Estado do Pará, referência em atenção secundária para doenças dermatológicas na região Norte, entre abril de 2022 e junho de 2024, relativo a 46 pacientes com esporotricose. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade (parecer n° 5.647.696/2022). O presente estudo seguiu o checklist CARE para relatos e séries de caso. A coleta de dados foi feita por meio de prontuários, incluindo informações demográficas, características clínicas e detalhes do tratamento.
Dos 46 pacientes, houve predomínio do sexo feminino (71,7%), provavelmente pelo fato de que as mulheres costumam ser as principais cuidadoras de animais, aumentando o risco de contaminação. As idades variaram de 6 e 85 anos, com média de 41,3 anos (fig. 1). Todos os participantes foram considerados imunocompetentes no momento do diagnóstico.
Quanto à epidemiologia, 15,2% (n=7) relataram contato prévio com solo ou matéria orgânica em decomposição, enquanto 95,5% (n=44) relataram contato com gatos. Destes, 76% (n=35) indicaram arranhaduras ou mordeduras recentes e 36,9% (n=17) mencionaram contato com secreções de gatos.
O exame histopatológico foi realizado em 78,2% das amostras (n=36), com laudos sugestivos ou diagnósticos de esporotricose. Em 62,5% dos casos (n=28) foi realizada cultura, confirmada em 32,6% (n=15).
As lesões cutâneas variaram de nódulos a úlceras, com predominância nas extremidades. Em 28,3% dos casos (n=13), observou‐se envolvimento concomitante de cadeias linfáticas. A forma cutânea localizada foi a mais frequente (69,5%), seguida pela linfocutânea (28,3%) (fig. 2) e pela grave/disseminada (2,2%).
Na avaliação dos animais, ientificou‐se que 63,6% dos felinos (n=28) haviam recebido diagnóstico médico‐veterinário clínico e/ou com auxílio de exame micológico direto de esporotricose. Informações sobre o desfecho clínico foram obtidas para 16 animais: cinco (31,2%) foram submetidos a eutanásia em virtude da gravidade do quadro, seis (37,5%) receberam tratamento com itraconazol com sucesso, e cinco (31,3%) evoluíram a óbito sem intervenção veterinária.
A medicação instituída em 93,5% dos casos humanos (n=43) foi o itraconazol, com doses entre 100mg e 200mg diários. Em 4,5% dos casos, o iodeto de potássio (KI) foi utilizado em virtude da idade dos pacientes (crianças, com doses entre 1,4 e 2,1 g/dia). O tratamento durou até seis meses em 46% dos pacientes, resultando em cicatrização completa das lesões. Efeitos adversos ao itraconazol foram relatados por apenas três pacientes (6,9%) – mialgia, vertigem, necessitando de substituição por terbinafina, com resposta satisfatória.
Quanto ao prognóstico, 79% dos casos (n=36) evoluíram com cicatrização das lesões. Oito pacientes não retornaram para seguimento e dois ainda estão em acompanhamento. Em geral, a cicatrização ocorreu entre dois e quatro meses após o início do tratamento. Alta ambulatorial foi registrada em 94,1% dos casos, com cicatrização completa e sem recidivas ou falhas terapêuticas.
Clinicamente, a forma mais comum observada foi a cutânea fixa ou localizada (fig. 3). As lesões predominantes foram úlceras, nódulos e placas eritemato‐infiltradas. Essa diferença em relação a outros estudos6 pode ser atribuída ao maior número de pacientes imunocompetentes neste estudo e ao acesso precoce ao atendimento médico. Os métodos diagnósticos mais utilizados no presente estudo foram a cultura do material e a análise histopatológica, com a cultura em Ágar Sabouraud Dextrose considerada o padrão‐ouro.7 Além disso, 12 dos 27 casos foram negativos pela cultura, apesar de apresentarem histopatologia sugestiva. Vale ressaltar que alguns pacientes já estavam em tratamento no momento do diagnóstico, o que pode ter influenciado os resultados da cultura.
Os resultados deste estudo (tabela 1) ressaltaram a variedade de apresentações clínicas e características das lesões, a boa eficácia do tratamento utilizado, o tempo relativamente curto de cicatrização (menos de seis meses para 46% dos pacientes) e desfecho de cura. A resposta terapêutica positiva ao itraconazol em todos os casos reforça a eficácia do medicamento,8 já bem estabelecida nos protocolos nacionais.
Dados clínico‐epidemiológicos dos pacientes com diagnóstico de esporotricose entre abril de 2022 a junho de 2024 de um centro de referência da Região Norte do Brasil
Dados clínico‐epidemiológicos | Total | (%) | |
---|---|---|---|
Sexo | Masculino | 13 | 27,3% |
Feminino | 33 | 71,7% | |
Procedência | Região metropolitana de Belém | 2 | 4,3% |
Belém | 44 | 95,7% | |
Exposição a Felinos | Sim | 44 | 95,5% |
Não | 2 | 4,5% | |
Arranhadura, mordedura ou contato com secreções | 37 | 84% | |
Confirmação diagnóstica no felino | 28 | 63,6% | |
Felino em tratamento | 6 | 21,4% | |
Forma clínica | Cutânea localizada | 32 | 69,5% |
Linfocutânea | 13 | 28,3% | |
Grave/disseminada | 1 | 2,2% | |
Medicamento | Itraconazol | 43 | 93,5% |
Iodeto de potássio | 3 | 4,5% | |
Tempo de cicatrização após início do tratamentoa | <3 meses | 10 | 22% |
<6 meses | 21 | 46% | |
>6 meses | 5 | 11% |
Desde a década de 1990, a interação com felinos infectados tem sido amplamente associada ao aumento da incidência de casos no Brasil,2,9 responsável por 95,5% das causas de infecção relatadas.10 Esse dado é corroborado pelos dados do presente estudo, que identificou essa via de transmissão em 44 pacientes (95,5%).
A transmissão ocorre principalmente por arranhaduras, mordeduras ou contato com secreções respiratórias de gatos infectados,4,9 afetando especialmente médicos veterinários, tutores ou ativistas em resgates de animais. Medidas sanitárias, controle veterinário e a manutenção dos felinos em ambientes seguros, sem acesso à rua, são essenciais para reduzir a transmissão entre felinos e humanos.
As limitações desta pesquisa incluem a amostra restrita a um único centro e a falta de acompanhamento prolongado de alguns pacientes. A necessidade de métodos diagnósticos precisos e a conscientização sobre a doença são essenciais para prevenir morbidade e sequelas. A falta de obrigatoriedade de notificação em alguns estados,7 como o Pará, e o desconhecimento da doença por médicos contribuem para a subnotificação, impactando as políticas públicas de controle.
EditorSílvio Alencar Marques.
Disponibilidade de dados de pesquisaTodo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
Suporte financeiroEste trabalho foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (FAPESPA) por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) n° 026/2023 – Universidade do Estado do Pará (UEPA).
Contribuição dos autoresLuiza Rennó Rocha de Oliveira: Levantamento dos dados, ou análise e interpretação dos dados; análise estatística; redação do artigo ou revisão crítica do conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
Isabela de Nazaré Tavares Cardoso Souza: Levantamento dos dados, ou análise e interpretação dos dados; análise estatística; redação do artigo ou revisão crítica do conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
Murilo dos Santos Souza: Levantamento dos dados, ou análise e interpretação dos dados; análise estatística; redação do artigo ou revisão crítica do conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
Carla Andrea Avelar Pires: Concepção e o desenho do estudo; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
Maria Amélia Lopes dos Santos: Concepção e o desenho do estudo; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
Francisca Regina Oliveira Carneiro: Concepção e o desenho do estudo; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Rennó Rocha de Oliveira L, Souza INTC, Souza MS, Pires CAA, dos Santos MAL, Carneiro FRO. Sporotrichosis in Amazon: series of 46 cases with emphasis on zoonotic transmission. An Bras Dermatol. 2025;100:501171.
Trabalho realizado no Ambulatório de Dermatologia Prof. Miguel Saraty de Oliveira, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde II, Universidade do Estado do Pará, Belém, PA, Brasil.