Pênfigo paraneoplásico (PPN), ou síndrome paraneoplásica autoimune multiorgânica (PAMS, do inglês paraneoplastic multiorgan autoimmune syndrome), é doença bolhosa autoimune caracterizada por envolvimento grave, frequentemente intratável, da membrana mucosa e lesões cutâneas polimórficas, classicamente associada a neoplasias hematológicas e, mais raramente, a tumores sólidos.1 Tendo em vista a raridade desse distúrbio e a variabilidade da apresentação clínica, os médicos devem manter alto índice de suspeição para PPN/PAMS a fim de evitar diagnóstico tardio. Em 2021, os critérios diagnósticos para PPN/PAMS foram revisados para melhor abranger a natureza heterogênea dessa síndrome: o diagnóstico é estabelecido quando os três critérios principais são atendidos (mucosite com ou sem envolvimento da pele, malignidade interna concomitante e evidência de autoanticorpos antiplaquina), ou quando dois critérios principais e dois menores estão presentes (acantólise e/ou dermatite liquenoide de interface observada na histopatologia com ou sem necrose de queratinócitos; e imunofluorescência [IF] direta mostrando coloração intercelular e/ou da membrana basal).2 O tratamento do PPN permanece um desafio clínico;3 corticosteroides sistêmicos ainda são a primeira linha de tratamento para pacientes com PPN. Opções adicionais para o controle da doença incluem agentes poupadores de esteroides convencionais, rituximabe e imunoglobulina intravenosa (IgIV).
O presente relato descreve o caso raro de PPN associado a carcinoma hepatocelular, controlado com sucesso com terapia com IgIV em combinação com corticosteroides sistêmicos.
Paciente do sexo masculino, caucasiano, de 81 anos, recentemente diagnosticado com carcinoma hepatocelular inoperável, foi encaminhado ao departamento por mucosite oral dolorosa com seis meses de duração, associada a disfonia, disfagia e perda ponderal significante (34%). Ele já havia concluído vários tratamentos para mucosite oral, incluindo terapia antiviral, antifúngica e corticosteroide sistêmico, sem melhora. Também digno de nota, no contexto da investigação da disfagia, o paciente havia sido submetido a endoscopia digestiva alta, que revelou esofagite erosiva de baixo grau.
Além da mucosite oral, nos últimos três meses, o paciente desenvolveu erupção cutânea disseminada, caracterizada por pápulas e placas hiperceratóticas eritemato‐acastanhadas no tronco (fig. 1A‐B). O exame clínico da mucosa oral mostrou erosões na língua, mucosa bucal e labial, recobertas por crostas hemorrágicas (fig. 1C).
O exame histológico da biopsia de pele revelou dermatite de interface liquenoide (fig. 2). Anticorpos séricos IgG anti‐desmogleína 3 e IgG anti‐envoplaquina foram detectados por ensaio de imunoadsorção enzimática (ELISA). O estudo de imunofluorescência direta da pele perilesional foi negativo.
Portanto, o diagnóstico de PPN foi estabelecido considerando o quadro clínico de mucosite erosiva crônica associada a neoplasia maligna, juntamente com a detecção de anticorpos anti‐envoplaquina.2
Além do sorafenibe para o tratamento do carcinoma hepatocelular, o paciente foi tratado com prednisolona 1mg/kg/dia (60mg) com redução progressiva da dose. Aproximadamente seis semanas depois, houve melhora significante das lesões cutâneas (fig. 3A‐B).
Apesar do tratamento com prednisolona e terapia direcionada para o carcinoma hepatocelular, os sintomas de disfagia e disfonia oral pioraram em virtude das erosões orais dolorosas persistentes, comprometendo a nutrição do paciente. Nesse momento, foi administrada IgIV (2g/kg/ciclo dividido em cinco dias) em combinação com prednisolona oral 60mg/dia, com redução progressiva da dose, o que resultou em melhora clínica significante. Um mês após o ciclo intravenoso, havia apenas algumas lesões na mucosa oral (fig. 3C). O paciente permaneceu clinicamente controlado, completando ciclos mensais de IgIV e prednisolona 30mg/dia. Um ano após o diagnóstico, veio a óbito em casa após traumatismo craniano.
Este caso de PPN foi associado a tumor sólido. Nesse contexto, as evidências que apoiam o uso de rituximabe são menos claras. Além disso, a administração de rituximabe ou outros imunossupressores convencionais pode promover a progressão tumoral em virtude de imunossupressão significante. Portanto, a combinação de corticosteroides sistêmicos com IgIV foi considerada a escolha mais segura. Além disso, a IgIV tem sido utilizada com sucesso em outras doenças bolhosas autoimunes, como pênfigo vulgar e pênfigo foliáceo, e é particularmente útil em casos refratários à terapia de primeira linha ou quando o uso de imunossupressores convencionais não é seguro.4,5
Em conclusão, o presente caso ilustra rara associação entre PPN e carcinoma hepatocelular. É importante destacar a eficácia e a segurança da terapia com IgIV em associação com corticosteroides sistêmicos nessa afecção. Que seja de conhecimento dos autores, existem apenas dois outros casos de PPN relacionados a carcinoma hepatocelular relatados na literatura, ambos tratados com corticosteroides sistêmicos e azatioprina, com melhora clínica das lesões orais em apenas um deles.6,7
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresJosé Ramos: Elaboração e redação do manuscrito ou revisão crítica de conteúdo intelectual relevante; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Cláudia Afonso: Participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; aprovação da versão final do manuscrito.
Ângela Roda: Elaboração e redação do manuscrito ou revisão crítica de conteúdo intelectual relevante; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Cristina Fonseca: Participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; aprovação da versão final do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.