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Vol. 95. Issue 6.
Pages 743-747 (01 November 2020)
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Vol. 95. Issue 6.
Pages 743-747 (01 November 2020)
Dermatologia Tropical/Infectoparasitária
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Hanseníase no Brasil no século XXI: análise dos indicadores epidemiológicos e operacionais utilizando regressão por pontos de inflexão
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Carlos Dornels Freire de Souza
Corresponding author
carlos.freire@arapiraca.ufal.br

Autor para correspondência.
, João Paulo Silva de Paiva, Thiago Cavalcanti Leal, Gabriel da Silva Urashima
Departamento de Medicina, Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca, Arapiraca, AL, Brasil
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Tabela 1. Indicadores epidemiológicos e operacionais selecionados para o estudo
Tabela 2. Tendência dos indicadores epidemiológicos e operacionais de hanseníase no Brasil, 2001‐2017
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Resumo

Objetivou‐se analisar a tendência dos indicadores epidemiológicos e operacionais da hanseníase no Brasil, 2001‐2017. Estudo de séries temporais que envolveu nove indicadores. Foi empregado o modelo de regressão por pontos de inflexão. Tendência decrescente: detecção geral (−4,8%), menores de 15 anos (−3,7%), prevalência (−7,0%) e grau 2/milhão de habitantes (−3,5%). A proporção de indivíduos com grau 2 de incapacidade apresentou tendência de crescimento (2,0%) a partir de 2001 e de contatos examinados a partir de 2003 (5,0%). As proporções de cura e de indivíduos com grau de incapacidade avaliado no diagnóstico e cura apresentaram comportamento estacionário. Embora avanços sejam notados, ainda há desafios a serem vencidos.

Palavras‐chave:
Estudos de séries temporais
Hanseníase
Mycobacterium leprae
Full Text

A hanseníase é uma doença tropical negligenciada causada pelo Mycobacterium leprae.1 Nas últimas três décadas, o número de casos da doença tem decrescido progressivamente. Apenas em 2017, 150 países reportaram 21.0671 casos novos da doença no mundo, dos quais 80,2% foram notificados por Brasil, Índia e Indonésia. Nesse mesmo ano, o Brasil contribuiu com 26.875 (92,3%) dos casos novos registrados no continente americano.2

Em razão desse cenário epidemiológico desfavorável, a Organização Mundial de Saúde (OMS) lançou a estratégia Global 2016‐2020, sustentada em três pilares: a) fortalecer o controle, a coordenação e a parceria do governo; b) combater a hanseníase e suas complicações; c) combater a discriminação e promover a inclusão.3 Nesse sentido, o monitoramento dos indicadores epidemiológicos reveste‐se de especial relevância para o controle da hanseníase e o sucesso das estratégias desenvolvidas.

Este trabalho teve como objetivo analisar a evolução temporal dos indicadores epidemiológicos e operacionais de hanseníase no Brasil no período 2001‐2017.

Trata‐se de um estudo ecológico de séries temporais. Foram incluídos no estudo nove indicadores epidemiológicos e operacionais de hanseníase no Brasil (tabela 1), obtidos a partir do Datasus (http://datasus.saude.gov.br/).4,5 Após a coleta, empregou‐se o modelo de regressão por pontos de inflexão para análise temporal. Calculou‐se o percentual de variação anual (APC, annual percent change). As tendências foram classificadas em crescente, decrescente ou estacionária. Considerou‐se intervalo de confiança de 95% e significância de 5%. Por usar dados de domínio público, dispensou‐se apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa.

Tabela 1.

Indicadores epidemiológicos e operacionais selecionados para o estudo

Indicador  Utilidade  Parâmetros 
Taxa de detecção de casos novos de hanseníase na população geral/100.000 habitantes.  Medir força de morbidade, magnitude e tendência da endemia.  Hiperendêmico: ≥ 40,0/100.000 hab. 
    Muito alto: 20,00‐39,99/100.000 hab. 
    Alto: 10,00‐19,99/100.000 hab. 
    Médio: 2,00‐9,99/100.000 hab. 
    Baixo: < 2,00/100.000 hab. 
Taxa de detecção de casos novos de hanseníase em menores de 15 anos/100.000 habitantes.  Medir força da transmissão recente da endemia e sua tendência.  Hiperendêmico: ≥ 10,00/100.000 hab. 
    Muito alto: 5,00‐9,99/100.000 hab. 
    Alto: 2,50‐4,99/100.000 hab. 
    Médio: 0,50‐2,49/100.000 hab. 
    Baixo: < 0,5/100.000 hab. 
Taxa de prevalência anual de hanseníase/10.000 habitantes.  Medir a magnitude da endemia.  Hiperendêmico: ≥ 20,0/10.000 hab. 
    Muito alto: 10,0‐19,9/10.000 hab. 
    Alto: 5,0‐9,9/10.000 hab. 
    Médio: 1,0‐4,9/10.000 hab. 
    Baixo: < 1,0/10.000 hab. 
Taxa de casos novos de hanseníase com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico/1 milhão de habitantes.  Avaliar as deformidades causadas pela hanseníase na população geral e compará‐las com outras doenças incapacitantes.  A tendência de redução da taxa de detecção, acompanhada da queda deste indicador, caracteriza redução da magnitude da endemia. 
Proporção de casos de hanseníase com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico entre os casos novos detectados e avaliados no ano.  Avaliar a efetividade das atividades da detecção oportuna e/ou precoce de casos.  Alto: ≥ 10%.Médio: 5%‐9,9%.Baixo: < 5%. 
Proporção de casos novos de hanseníase com grau de incapacidade física avaliado no diagnóstico.  Medir a qualidade do atendimento nos serviços de saúde.  Bom: ≥ 90%.Regular: ≥ 75%‐89,9%.Precário: < 75%. 
Proporção de casos novos de hanseníase com grau de incapacidade física avaliado na cura.  Medir a qualidade do atendimento nos serviços de saúde.  Bom: ≥ 90%.Regular: ≥ 75%‐89,9%.Precário: < 75%. 
Proporção de contatos examinados de casos novos de hanseníase diagnosticados nos anos das coortes.  Medir a capacidade dos serviços de fazer a vigilância de contatos de casos novos de hanseníase, o que aumentando a detecção oportuna de casos novos.  Bom: ≥ 90,0%.Regular: ≥ 75,0%‐89,9%.Precário: < 75,0%. 
Proporção de cura de hanseníase entre os casos novos diagnosticados nos anos das coortes.  Avaliar a qualidade da atenção e do acompanhamento dos casos novos diagnosticados até a completitude do tratamento.  Bom: ≥ 90%.Regular: ≥ 75%‐89,9%.Precário: < 75%. 

Fonte: World Health Organization, 2017.3

Entre 2001 e 2017, foram notificados 652.764 casos novos de hanseníase no Brasil. Desses, 41.191 (6,31%) eram menores de 15 anos. As taxas de detecção na população em geral e em menores de 15 anos apresentaram tendência de redução a partir de 2003 (APC = −5,9% e −5,0%, respectivamente). Considerando o período completo, os percentuais de redução foram menores (4,8% e 3,7%, respectivamente). Mesmo com os avanços, a endemia, em 2017, foi classificada como alta na população geral (12,94/100.000) e em menores de 15 anos (3,72/100.000). A taxa de prevalência, por sua vez, apresentou tendência linear de redução desde 2001 (APC = −7,0%), decresceu de 3,99 para 1,35/10.000 habitantes (fig. 1 e tabela 2).

Figura 1.

Indicadores epidemiológicos e operacionais de hanseníase no Brasil, 2001‐2017.

(0.53MB).
Tabela 2.

Tendência dos indicadores epidemiológicos e operacionais de hanseníase no Brasil, 2001‐2017

Indicador  Período  APC (95% IC)  p‐valor  Tendência 
Taxa detecção de casos novos de hanseníase na população geral/ 100.000 habitantes  2001‐2003  3,8 (−8,8‐18,1)  0,5  Estacionária 
  2003‐2017  −5,9 (−6,5‐−5,4)  < 0,001  Decrescente 
  2001‐2017  −4,8 (−6,2‐−3,3)  < 0,001  Decrescente 
Taxa de detecção de casos novos de hanseníase em menores de 15 anos/ 100.000 habitantes  2001‐2003  5,5 (−12,1‐26,7)  0,5  Estacionária 
  2003‐2017  −5,0 (−5,8‐−4,2)  < 0,001  Decrescente 
  2001‐2017  −3,7 (−5,8‐−1,6)  < 0,001  Decrescente 
Taxa de prevalência anual de hanseníase/10.000 habitantes  2001‐2017  −7,0% (−9,7‐−4,2)  < 0,001  Decrescente 
Taxa de casos novos de hanseníase com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico/1 milhão de habitantes  2001‐2017  −3,5 (−4,5‐−2,5)  < 0,001  Decrescente 
Proporção de casos de hanseníase com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico entre os casos novos detectados e avaliados no ano  2001‐2017  2,0 (0,8‐3,3)  < 0,001  Crescente 
Proporção de casos novos de hanseníase com grau de incapacidade física avaliado no diagnóstico  2001‐2011  0,6 (0,3‐1,0)  < 0,001  Crescente 
  2011‐2017  −0,4 (−1,2‐0,3)  0,2  Estacionária 
  2001‐2017  0,2 (−0,1‐0,6)  0,2  Estacionária 
Proporção de casos novos de hanseníase com grau de incapacidade física avaliado na cura  2001‐2007  −1,5 (−2,3‐−0,6)  < 0,001  Decrescente 
  2007‐2010  8,4 (3,1‐14,0)  < 0,001  Crescente 
  2010‐2017  −1,1 (−1,8‐−0,5)  < 0,001  Decrescente 
  2001‐2017  0,5 (−0,4‐1,4)  0,3  Estacionária 
Proporção de contatos examinados de casos novos de hanseníase diagnosticados nos anos das coortes  2001‐2003  −20,4 (−35,5‐−1,7)  < 0,001  Decrescente 
  2003‐2017  5,0 (4,0‐6,1)  < 0,001  Crescente 
  2001‐2017  1,4 (−1,1‐4,0)  0,3  Estacionária 
Proporção de cura de hanseníase entre os casos novos diagnosticados nos anos das coortes  2001‐2004  −6,1 (‐8,8‐−3,6)  < 0,001  Decrescente 
  2004‐2007  7,8 (2,1‐13,9)  3,1  Decrescente 
  2007‐2017  −0,1 (−0,6‐0,3)  0,5  Estacionária 
  2001‐2017  0,1 (−0,9‐1,1)  0,8  Estacionária 

95% IC, intervalo de confiança 95%; APC, annual percent change (percentual de variação anual).

Dos indicadores relacionados à presença de incapacidade física, a taxa de casos novos de hanseníase com grau 2 de incapacidade física no diagnóstico apresentou tendência de redução desde 2001 (APC = −3,5%), decrescendo de 14,00 para 9,39/1 milhão de habitantes. Por outro lado, a proporção de indivíduos diagnosticados com grau 2 apresentou tendência de crescimento significativo (APC = 2,0%), passando de 6,0% em 2001 para 8,3% em 2017 (fig. 1 e tabela 2).

As proporções de indivíduos avaliados nos momentos do diagnóstico e da cura mostraram padrão temporal estacionário no período estudado. Em todos os anos da série temporal, a proporção de avaliados foi considerada regular (75%‐89,9%) no momento do diagnóstico e precária (< 75%) no momento da alta por cura (fig. 1 e tabela 2).

A proporção de contatos examinados apresentou tendência de crescimento a partir de 2003 (APC = 5,0%), passando de 43,9% em 2003 para 78,9% em 2017, considerado regular. A proporção de indivíduos curados, por outro lado, apresentou tendência estacionária no período: 81,6% em 2001 e 81,2% em 2017, considerada regular (fig. 1 e tabela 2).

Mesmo considerando os avanços no enfrentamento à hanseníase, os achados mostram importantes desafios a serem superados pelo Brasil. O primeiro deles diz respeito aos elevados percentuais anuais de redução na detecção geral (−4,8%), em menores de 15 anos (−3,7%) e na taxa de grau 2 de incapacidade (−7,0%). Como se trata de uma doença crônica de evolução lenta e controle difícil, reduções anuais tão acentuadas devem ser vistas com preocupação. Na população geral, por exemplo, em 2005, foram registrados mais de 49 mil casos da doença; no ano seguinte, pouco mais de 43 mil. Estudos brasileiros indicam elevada prevalência oculta da doença no país, o que tem impedido a identificação do número real de doentes no Brasil.5 Neste estudo, a elevação da proporção de casos com grau 2 no diagnóstico reforça essa hipótese de subdiagnóstico.6,7

O segundo desafio brasileiro refere‐se à necessidade de qualificação do sistema de vigilância. Faltam ambulatórios e pessoal qualificados para o acompanhamento adequado dos casos, o que compromete a avaliação do grau de incapacidade, o monitoramento das funções neurais, o manejo dos quadros reacionais e o adequado exame de contatos, ferramentas fundamentais para a interrupção da cadeia de transmissão da doença na comunidade.8–10A partir dos achados, advoga‐se a necessidade do desenvolvimento de planos/estratégias que permitam o diagnóstico precoce da doença e favoreçam o acompanhamento sistemático dos pacientes, com destaque para o diagnóstico precoce e a prevenção de incapacidades físicas.

Suporte financeiro

Nenhum.

Contribuição dos autores

Carlos Dornels Freire de Souza: Análise estatística; aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

João Paulo Silva de Paiva: Análise estatística; aprovação da versão final do manuscrito; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Thiago Cavalcanti Leal: Análise estatística; aprovação da versão final do manuscrito; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Gabriel da Silva Urashima: Análise estatística; aprovação da versão final do manuscrito; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.

Conflitos de interesse

Nenhum.

Referências
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Como citar este artigo: Souza CDF, Paiva JPS, Leal TC, Urashima GS. Leprosy in Brazil in the 21st century: analysis of epidemiological and operational indicators using inflection point regression. An Bras Dermatol. 2020;95:743–7.

Trabalho realizado no Núcleo de Estudos em Medicina Social e Preventiva, Departamento de Medicina, Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca, Arapiraca, AL, Brasil.

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